Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO



GARDEN

Uma breve crônica:
O jardineiro cego de um olho parece gostar
Do cultivo sistemático de desabridas flores
Protegidas em estufas à prova de tempo.
E aprecia ainda mais o convívio no limo
Com as extenuadas estátuas do jardim
Que já apresentam artrose na coluna dorsal.
As duas deVênus Calipígia, por exemplo, se sentam na relva
E exibem as vulvas, o trecho mais tenro de seus mármores.
Em contrapartida os faunos priápicos de bronze
Desaprenderam as filigranas barrocas da arte masturbatória.

Uma novidade:
O novo arquiteto (que detesta o estilo antigo
E num manifesto contra a tradição
Mandou Dédalos enfiar os dez dedos no cu)
Dedica-se fleumático a projetar um labirinto
De cercas vivas
Do qual, se preciso, pulará como um sapo
Para a liberdade.

Uma nota:
A múmia mais antiga do museu de história natural
Foi roubada e vandalizada. Resgatada aos pedaços,
Doaram-na ao jardim. Sem outro uso adequado
Foi moída e peneirada.Tornou-se insigne ração
Para os peixes balofos do pitagórico lago triangular,
Muito elogiável e oportuno,
Pois ambos têm equivalente valor histórico.


CORRESPONDÊNCIA

Suponho que tenhas
O endereço da verdade
Já que lhe envias um memorando
Com o aviso de que ela não existe.

Para todos os efeitos
Basta que a verdade se verifique
Pelo ato de chamar alguém
Se esse alguém responder:
A tua solidão
Não te enganaria a tal respeito
Por mais que não quiseras crer.


SUBSTITUIÇÃO

Se ao menos a felicidade
Tivesse deixado definitiva cicatriz,
Um valor nítido para a incógnita
Do primeiro termo de

X = + feliz.

Mas essa ausência
Variável,
Para mais ou menos,
Jamais resultará em raiz.




7 comentários:

  1. Muito bom...
    Principalmente o terceiro...

    ResponderExcluir
  2. O ENDEREÇO DA VERDADE
    O endereço da verdade, posso deixá-lo aqui. Na verdade, pensei usá-lo para preencher uma etiqueta pendurada na viagem usada para férias. Tem de ser um conto curto, não maior que isto.
    Mina

    Sempre um prazer seguir seu "cultivo das letras"...

    CULTIVO DAS LETRAS
    À falta dum culto suficientemente exotérico para dar aos sonhos a promessa dum sono "do outro mundo", cultivo as letras. Uso as maiúsculas depois dos pontos finais, aqueles onde continuo em frente e o primeiro.
    Mina

    Dá sempre gozo voltar!

    ResponderExcluir
  3. três tempos, o mesmo termo, ácido nas partes mais sensíveis.

    excelente postagem, Marcantonio!

    PS* gostei imensamente do conto.

    beijo.

    ResponderExcluir
  4. Substituição: amei! Sentia falta da tua poesia, Marquinho...

    Beijos,

    ResponderExcluir
  5. Esse diário ainda meio sem lápis e páginas, deixa de comparecer mais que adolescente de ensino médio às aulas, mas quando vem, vem!
    Impressionante escrita!

    beijoss :)

    ResponderExcluir
  6. AH! A felicidade!!!
    Gostei muito de te ler!

    ResponderExcluir
  7. Substituição!! esse poema é perfeito !! sem palavras simples e objetivo! ótima construção.

    ResponderExcluir